Governo Milei decide intervir no câmbio na Argentina
O governo argentino realizou nesta quinta-feira (18) uma nova intervenção no câmbio para conter a alta do dólar frente ao peso, com a venda de US$ 379 milhões em reservas pelo Banco Central.
Somados aos US$ 53 milhões negociados na véspera, o total de reservas vendidas pelo BC alcançou US$ 432 milhões em dois dias. A pressão sobre o peso cresceu à medida que investidores correram para dolarizar suas carteiras, diante da crise do governo de Javier Milei. (leia mais abaixo)
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Desde a adoção do regime flutuante, em abril, o BC não realizava intervenção no câmbio. O movimento derrubou os ativos de risco da Argentina nesta quinta: o índice acionário S&P Merval fechou em queda de 4,93%, enquanto os títulos soberanos recuaram, em média, 3,8%.
A turbulência no mercado também levou o índice de risco do país — indicador da confiança dos investidores — a superar 1.400 pontos-base durante o pregão, atingindo o nível mais alto em um ano.
No início do mês, o governo argentino já havia anunciado que faria intervenções no câmbio. A medida ocorre em meio à queda expressiva do peso frente ao dólar desde a adoção do regime flutuante. Segundo o governo, o Tesouro Nacional passará a atuar diretamente na compra e venda de dólares para garantir que haja oferta suficiente e evitar movimentos bruscos de desvalorização.
A forte intervenção do BC manteve a taxa de câmbio oficial no mercado interbancário estável em 1.474,5 pesos por dólar. Nesta quinta-feira, a autoridade monetária passou a divulgar os limites de sua banda diária de negociação, estabelecendo 1.474,83 para vendas e 948,76 para compras.
O teto da banda cambial, mecanismo criado para limitar a valorização do dólar no mercado argentino, é corrigido diariamente com um acréscimo de 1% ao mês desde o fim das restrições cambiais promovidas pelo governo. Ontem, esse limite foi estabelecido em 1.474,40 pesos.
Pelo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), sempre que a cotação no atacado ultrapassa esse valor, o Banco Central está autorizado a intervir com venda de reservas para conter a alta.
A decisão de Milei de voltar a intervir no câmbio surpreendeu o mercado por vir de um governo de agenda ultraliberal. Em abril, por exemplo, o próprio governo havia comemorado o fim do “cepo” — sistema que restringia a compra de dólares pelos argentinos para tentar controlar o valor do peso.
Por que o governo Milei voltou a intervir no câmbio?
1. Queda do peso argentino e risco de inflação
Embora tenha conseguido reduzir a inflação que ultrapassava 200% ao ano, por meio de um plano severo de cortes nos gastos públicos, o governo Milei ainda não conseguiu gerar plena confiança na economia nem atrair um bom volume de investimentos estrangeiros.
O presidente ainda enfrenta dificuldades para acumular reservas em dólar, essenciais para garantir o pagamento das dívidas argentinas e reduzir a vulnerabilidade do peso. Em última instância, essas reservas facilitariam até a prometida transição para a dolarização da economia.
Na tentativa de recuperar a confiança dos investidores, Milei tem dado passos calculados.
Quando extinguiu o “cepo”, em abril, o câmbio passou a flutuar de forma mais livre. Por um lado, a medida agradou ao mercado por seu viés liberal. Por outro, enfraqueceu ainda mais o peso, já que a demanda por dólares é maior.
🔎 Em outras palavras: enquanto os argentinos buscam proteger suas economias comprando dólares, o governo tenta evitar que a desvalorização do peso volte a pressionar os preços.
Cotação do Peso argentino
Arte/g1
Apesar de algum sucesso inicial, as reservas voltaram a cair em 2025, e chegaram a cerca de US$ 7 bilhões negativos após o fim do “cepo”. Começa um círculo vicioso: com pouco dinheiro em caixa, o governo tem menor capacidade de intervir, e o peso tende a se desvalorizar ainda mais.
Fora isso, a valorização do dólar encarece importações, reduz a confiança na moeda local e alimenta a inflação — fator central para a manutenção do apoio popular a Milei.
Diante disso, o governo argentino endureceu as regras para operações em moeda estrangeira com credores comerciais. Assim, os bancos ficaram proibidos de ampliar sua posição em câmbio à vista no último dia do mês, medida que busca evitar manobras capazes de aumentar a demanda por dólares e pressionar o peso.
Até então, o governo vinha elevando a taxa de juros de referência para tentar conter a valorização do dólar frente ao peso, mas a estratégia não se mostrou suficiente. Agora, segundo Carlos Henrique, diretor de operações da Frente Corretora, a nova intervenção é uma “contenção de crise”.
“O governo já vinha tentando reduzir a volatilidade com aumento de juros e restrições bancárias, mas a pressão sobre o peso tornou a intervenção direta inevitável, refletindo problemas que vinham se acumulando desde antes da crise política atual e a incapacidade de resolver a crise fiscal”, afirma.
Para Henrique, embora Milei já tivesse recorrido a intervenções indiretas, a medida anunciada ontem representa uma “mudança drástica” em relação à sua política econômica liberal. “Ao intervir, o governo abandona temporariamente a ideia de que o mercado deve se autorregular e assume um papel de controle, característico de políticas mais heterodoxas”.
2. Escândalo de corrupção envolvendo Karina Milei
Milei também enfrenta crises políticas que fragilizam seu governo e afastam investidores. No fim de agosto, um escândalo — com direito a áudios vazados, acusações de corrupção e disputas internas — atingiu a cúpula do poder argentino.
Nos áudios, Diego Spagnuolo, ex-aliado do governo, acusa Karina Milei, irmã do presidente e secretária-geral da Presidência, de envolvimento em corrupção.
Presidente argentino, Javier Milei, e sua irmã Karina Milei.
Gustavo Garello/ AP Photo
Spagnuolo é ex-chefe da Agência Nacional para a Deficiência (Andis). Segundo ele, Karina e o subsecretário Eduardo “Lule” Menem teriam exigido propina de indústrias farmacêuticas para a compra de medicamentos destinados à rede pública.
Segundo relatório do Bradesco BBI, escândalos políticos como esse “fragmentam o cenário, minando a reputação e a confiança. A perda de influência no Congresso leva a uma expansão fiscal não planejada, em conflito com as metas do FMI”.
🔎 Quando investidores estrangeiros retiram recursos, há menos dólares em circulação, o que aumenta a demanda pela moeda americana em relação ao peso. Isso faz com que o peso perca valor, já que o câmbio passa a refletir uma moeda mais escassa diante da demanda existente.
3. Tensão eleitoral
Tudo isso aconteceu às vésperas das eleições em Buenos Aires, que aconteceu no dia 7 de setembro para definir novos deputados e senadores nacionais. O partido de Milei sofreu uma dura derrota na província, a mais importante do país, responsável por quase 40% dos eleitores da Argentina.
No pleito, estavam em disputa 46 cadeiras na Câmara de Deputados e 23 no Senado, além da eleição de vereadores em 135 municípios da província (excluindo a cidade de Buenos Aires).
Com 99% das urnas apuradas, o Peronismo ficou com 47,3% dos votos, enquanto o partido de Milei, A Liberdade Avança, obteve 33,7%. A diferença, de 13,6 pontos, um resultado inesperado, é considerada uma verdadeira surra eleitoral.
Das 10 eleições provinciais realizadas este ano na Argentina, Milei ganhou apenas duas.
A partir do segundo ano de mandato, Milei e seu partido acumularam derrotas relevantes no Congresso, que derrubou cortes de gastos públicos e anulou decretos presidenciais.
“A instabilidade política atuou como catalisador para a desvalorização da moeda, forçando Milei a intervir”, afirma Henrique.
Javier Milei, à época candidato à presidência da Argentina, ergue uma nota de dólar com seu próprio rosto
Natacha Pisarenko/AP