Após o governo sofrer dura derrota no Congresso com a rejeição de uma Medida Provisória que elevaria impostos sobre o sistema financeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse que vai apresentar novas propostas de tributação do setor, mirando especialmente as fintechs — plataformas de serviços financeiros digitais.
O governo argumenta que a medida tributará os mais ricos e que é necessária para garantir recursos para políticas públicas para os mais pobres.
A medida tem apoio da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), que diz sofrer concorrência desleal devido à tributação menor das fintechs. Enquanto bancos pagam 20% de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), essas plataformas pagam 9% ou 15%, a depender dos serviços que operam.
A alíquota menor é cobrada das fintechs que atuam apenas como meio de pagamento, permitindo ao correntista fazer operações de Pix, ter cartão de débito e/ou crédito e pagar boletos, por exemplo. Esse é o tipo de plataforma mais comum.
Já a alíquota mais alta incide sobre as fintechs que possuem uma licença financeira, que possibilita a tomada de empréstimos e realizações de investimentos. As fintechs com maior faturamento fazem parte deste grupo.
A proposta do governo, que foi barrada com a queda da MP, era elevar a alíquota de 9% para 15% e a de 15% para 20%.
O setor rebate a tentativa de elevar sua taxação dizendo que isso afetaria toda a população, já que as fintechs oferecem serviços bancários mais acessíveis. Além disso, reclama de falta de acesso ao governo para dialogar sobre a proposta de maior tributação.
“A gente não conseguiu falar com o [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad. A gente não conseguiu falar com os ministros que são mais próximos de Lula, como, por exemplo, o Sidônio [Palmeira, ministro das Secretaria de Comunicação]. A gente não conseguiu falar com a Casa Civil. Eles não nos ouviram”, disse à BBC News Brasil o presidente da Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs), Diego Perez.
O segmento apresentou forte crescimento nos últimos anos, passando de 742 instituições em 2020 para 1.706 em 2025, segundo dados da associação.
A maior delas, o Nubank, tem mais de 100 milhões de correntistas e anunciou lucro líquido de US$ 637 milhões no segundo trimestre (o equivalente à cerca de R$ 3,5 bilhões no final de junho). Como comparação, o maior banco brasileiro, o Itaú, lucrou R$ 11,3 bilhões no mesmo período.
Por outro lado, o Nubank ultrapassou o Itaú como instituição financeira mais valiosa do país, tendo alcançado o recorde de US$ 78,1 bilhões em valor de mercado na Bolsa de Valores de Nova York (Nyse) no dia 19 de setembro, o equivalente a R$ 415,5 bilhões pelo câmbio daquele dia.
Sem citar nomes, Lula argumentou ao defender a maior taxação das fintechs que algumas já têm tamanho similar a bancos e que, por isso, devem contribuir mais. Ele disse que discutirá a medida com seus ministros a partir da quarta-feira (15/10) quando voltar a Brasília após compromissos em São Paulo e Roma, na Itália, onde se encontrou com o papa Leão 14 e participou do Fórum Mundial da Alimentação, promovido pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
“Vou reunir o governo para discutir como é que a gente vai propor que o sistema financeiro, sobretudo as fintechs, que tem fintech hoje maior do que banco, que elas paguem o imposto devido a esse país”, disse em entrevista à Rádio Piatã.
O setor de fintechs, por sua vez, argumenta que suas empresas operam de forma diferente dos bancos e por isso devem ser menos taxadas.
Um exemplo, afirma Diego Perez, presidente da ABFintechs, são as operações de alavancagem, em que os bancos podem emprestar recursos dos correntistas depositados em suas contas. Já as fintechs, afirma, podem apenas ofertar crédito com seu próprio capital, sem mexer em valores de clientes.
Perez também argumenta que, na prática, os bancos pagam CSLL menor que 20% porque podem abater valores da base de cálculo do imposto, como carteiras de crédito inadimplentes e créditos tributários, algo que ele diz não ser permitido às fintechs.
Já a Febraban acusa o setor de fintechs de fazer “planejamento tributário” para driblar impostos.
Após a queda da Medida Provisória que elevaria a taxação de serviços financeiros, a federação dos bancos criticou as fintechs em uma nota.
“A Febraban não teve qualquer atuação contrária à Medida Provisória 1303, apesar de sua posição histórica sobre os impactos de medidas que aumentam a carga tributária sobre o crédito”, disse a organização.
“Foi notório, no entanto, que fintechs, bem mais lucrativas e com maior base de clientes do que grandes bancos, trabalharam contra a MP e se posicionaram contra a equiparação da alíquota da CSLL. Fintechs, aliás, que se utilizam de estratégias de planejamento tributário para reduzir o pagamento de impostos no Brasil”, continuou a Febraban.
Questionado sobre a manifestação da Febraban, Perez disse que vê a nota com preocupação.
“Está sendo propagado no mercado que as fintechs são empresas ruins, que combatem as propostas positivas do governo. Não é isso. A gente contribui para a melhoria da dignidade financeira das pessoas e não o contrário”.
“O setor trouxe a inclusão de mais de 60 milhões de pessoas que nunca tiveram acesso a serviços financeiros dos mais básicos disponíveis no mercado”.
Para além do debate tributário, o governo aumentou, recentemente, a fiscalização sobre as fintechs, que passaram a ter as mesmas obrigações de dar transparência às suas transações do que os bancos tradicionais, informando à Receita Federal sobre transações atípicas de seus clientes.
O objetivo é inibir o uso dessas empresas por criminosos para lavagem de dinheiro.
A mudança ocorreu um dia após ser deflagrada uma megaoperação da Polícia Federal para desarticular um esquema de adulteração de combustíveis, comandado pelo grupo criminoso Primeiro Comando da Capital (PCC), que utilizava fintechs para movimentação financeira, lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio.
Setor de fintechs defende aumento menor do imposto
Segundo a tributarista Bianca Xavier, professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas, o setor de fintechs é muito heterogêneo, com empresas de diferentes tamanhos.
Na sua visão, não seria correto igualar toda a tributação do setor à dos bancos, mas manter uma gradação do imposto, conforme o lucro destas empresas.
“A regra, no Direito Tributário, é que tem que tributar todo mundo na medida da sua capacidade econômica. Então, as grandes fintechs e os grandes bancos devem pagar mais do que fintechs menores”, diz Xavier.
O presidente da ABFintechs diz que o setor levou uma proposta alternativa ao governo Lula, mas que ela não foi considerada.
A ideia seria as alíquotas de CSLL das fintechs subissem menos, apenas 1 ponto percentual, para 10% e 16%. Por outro lado, a CSLL dos bancos subiria de 20% para 21%.
Segundo Diego Perez, o setor teve diálogo com o secretário de reformas econômicas do Ministério da Fazenda, Marcos Barbosa Pinto, mas não conseguiu acesso ao primeiro escalão do governo.
“A gente tentou levar a proposta no sentido de, ao invés de aumentar só para fintechs, vamos aumentar pra todos. Mas não fomos ouvidos”, reclama Perez.
O presidente da ABFintechs argumenta que os bancos têm uma fatia bem maior do mercado de serviços financeiros, e por isso devem pagar mais imposto.
“De todo o crédito concedido no mercado, 15% são do Itaú, outros 15% são do Bradesco, 12% são do Santander. E as fintechs? Elas, somadas, representam 2%, 3%, sendo que a maior delas, que é o Nubank, tem 1,6%”.
“Isso ocorre em vários produtos financeiros. Se você pegar os depósitos, poupança, emissão de certificados como CDBs, todos esses produtos, os bancos têm pelo menos duas, três vezes mais do que as fintechs de participação no mercado.”
Entenda a ‘MP dos Impostos’
A chamada MP dos impostos, que previa aumento de tributos e redução de despesas, era importante para o governo fechar as contas no próximo ano. Por isso, Lula ainda discutirá com sua equipe novas medidas fiscais.
Havia previsão de que a MP derrubada levaria a uma arrecadação de R$ 20,9 bilhões e corte de gastos de R$ 10,7 bilhões em 2026.
Além das fintechs, a medida também aumentava a tributação das bets, as plataformas de apostas online, e elevava de 15% para 20% a alíquota cobrada sobre juros sobre capital próprio (JCP), uma forma de as empresas distribuírem lucro entre os acionistas.
A MP também criava um imposto de 5% sobre a Letra de Crédito Imobiliário (LCI) e a Letra de Crédito do Agronegócio (LCA), dois investimentos isentos hoje.
A proposta também tentava coibir “compensações abusivas” de créditos tributários, ao evitar que empresas utilizassem compensações que não fossem relacionadas à sua atividade principal.
“A MP 1.303 tinha alguns elementos muito importantes”, afirma o economista-chefe da Warren Investimentos, Felipe Salto.
“O problema é que o processo de negociação e costura da MP acabaram piorando o texto. Então, apesar do mérito de vários tópicos da medida em tela, não se conseguiu politicamente viabilizá-la.”
Lula criticou a decisão do Congresso de rejeitar a MP, que não chegou a ser votada, porque a maioria dos deputados aprovou sua retirada de pauta no dia em que terminava o prazo para sua aprovação.
“A decisão da Câmara de derrubar a medida provisória que corrigia injustiças no sistema tributário não é uma derrota imposta ao governo, mas ao povo brasileiro. Essa medida reduzia distorções ao cobrar a parte justa de quem ganha e lucra mais. Dos mais ricos”, disse o presidente, em mensagem nas suas redes sociais.
O argumento do governo divide economistas. Para Gabriel Barros, economista-chefe da ARX Investimentos, as medidas propostas afetariam toda população ao encarecer o crédito.
“Mais imposto sobre o crédito é pago pela sociedade via maior spread bancário [lucro dos bancos embutidos nos juros] e custo de financiamento na ponta, não é esse o caminho mais inteligente a seguir”, diz Barros, ao comentar o conjunto da MP.
“A taxa mais reduzida para fintechs se deu no contexto de estímulo à competição bancária, que é benéfica para a sociedade no médio prazo. A elevação da carga tributária vai na contramão da competição, amplia a barreira de entrada e cria distorções.”
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