Em meio à crise diplomática entre Estados Unidos e Brasil, os bancos brasileiros ficaram no centro de um fogo cruzado.
De um lado, instituições como Itaú, Bradesco, Santander, BTG Pactual e Banco do Brasil vivem o dilema de cumprir as sanções do governo de Donald Trump contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Por outro, seguir a decisão do ministro Flávio Dino — que diz que a aplicação no Brasil de sentenças judiciais e leis estrangeiras precisam ser validadas por acordos internacionais ou referendadas pela Justiça brasileira.
No dia 2 de setembro, o primeiro dia de julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no STF, estes cinco grandes bancos receberam uma carta do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos com questionamentos sobre a aplicação da Lei Magnitsky.
O comunicado do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (Ofac, da sigla em inglês), que pertence ao Tesouro americano, questionou quais ações foram ou estão sendo tomadas pelas instituições para cumprir a sanção aplicada a Moraes.
A jurista Camila Villard, especialista em direito econômico e regulação do mercado monetário, avalia que o sistema financeiro do Brasil possui mecanismos robustos para enfrentar as sanções americanas, mas que a dependência do dólar impõe limites à soberania monetária do país.
“No caso do Brasil, isso significa depender de recursos em dólar e de captação de moeda internacional para aplicações e relações externas. Assim, nossa soberania monetária se reduz, pois, embora o real seja plenamente exercido no território nacional, fora dele o país está sujeito às amarras do sistema financeiro global”, diz a especialista.
Villard é professora associada de direito da ESSCA School of Management, na França, e fundadora do Instituto Mulheres na Regulação.
Na avaliação da especialista, o desafio de médio e longo prazo é reduzir essa vulnerabilidade.
“É urgente que se construa uma política mais robusta, com recursos humanos e financeiros, para desenvolver alternativas. A necessidade desse plano ficou ainda mais evidente no cenário pós-eleição de Trump”, questiona.
Para ela, o país deu passos importantes, como a implementação do Pix. “Recentemente, o Banco Central Europeu começou a defender o euro digital com o mesmo argumento: a necessidade de assegurar soberania monetária, sem depender de entidades privadas submetidas à lei americana”, pontua.
“Ou seja, o que a Europa está começando a discutir agora, o Brasil já implementou com o Pix. Essa vanguarda nos garante até mesmo uma blindagem parcial contra eventuais sanções externas que poderiam afetar o sistema interno.”
Mas, para dar mais passos adiante, ela alerta que é preciso trabalhar em cooperação internacional. “Mas precisamos, no médio e longo prazo, pensar em mecanismos cooperativos que permitam enfrentar crises internacionais de forma menos dependente dos Estados Unidos.”
Confira a entrevista completa abaixo.
BBC News Brasil – Por que a Lei Magnitsky, uma lei americana, pode ter efeitos práticos e obrigatórios para bancos em outros países? Qual é o mecanismo que garante essa “extraterritorialidade”, na prática?
Camila Villard – A Magnitsky faz parte de um conjunto de leis criadas pelos Estados Unidos que atribuem sanções a um grupo de países ou a pessoas incluídas na Specially Designated List, ou lista de pessoas designadas. Hoje, essa lei tem mais de 600 nomes nessa lista.
Inicialmente, ela foi criada para combater corrupção e violações de direitos humanos internacionalmente. Mas ela não deixa de ser, claro, uma medida unilateral.
Nos relatórios de prestação de contas do uso dessa lei pelo Poder Executivo americano, especialmente durante a gestão de Joe Biden, há uma preocupação em, apesar de ser um ato unilateral, mostrar multilateralismo, cooperação com países na definição dos agentes incluídos nessa lista.
O que observo, porém, é o uso desse poder pelo governo Trump com uma motivação claramente política por trás, o julgamento do ataque à democracia brasileira. Ainda que com a justificativa discursiva de que a inclusão do ministro Alexandre de Moraes teria relação com violação de direitos humanos e liberdade de expressão de cidadãos americanos.
A regra do direito é que as leis se aplicam na jurisdição de cada país. Mas leis sancionatórias americanas, das quais a Magnitsky é uma, atingem entidades que usam o sistema financeiro internacional.
Na prática, o mecanismo é puramente financeiro: toda entidade que usa o dólar como moeda internacional e a infraestrutura do mercado financeiro americano para transações internacionais fica sujeita a essa lei. Esse é o caso dos bancos brasileiros. Eles, de fato, precisam obedecer à legislação americana.
Ainda que, do ponto de vista jurídico, não haja um processo de internalização dessa norma no Brasil — seja por meio de lei nacional ou por cooperação judiciária —, o que existe é a aplicação de fato, pelo poder monetário que os Estados Unidos exercem internacionalmente.
BBC News Brasil – Então, esse poder da Magnitsky tem a ver com a centralidade do dólar e do sistema financeiro americano.
Villard – Exatamente. O mecanismo que permite a aplicação extraterritorial de decisões jurídicas americanas é o poder do dólar. Hoje, se olharmos para os bancos brasileiros, eles dependem de correspondentes bancários nos Estados Unidos para transações internacionais ou têm subsidiárias no país. O próprio Bradesco, por exemplo, tem quatro entidades do grupo econômico baseadas nos EUA, entre Nova York e Flórida.
Então, a capacidade dessa lei, do ponto de vista jurídico, de alcançar efeitos extraterritoriais se deve exatamente ao poder internacional do dólar. Apesar de ser uma moeda nacional, ela é usada por diferentes agentes econômicos no mundo, e os bancos brasileiros dependem desse fluxo de crédito internacional denominado em dólar, sustentado por entidades submetidas à jurisdição americana.
Os bancos correspondentes, situados em território americano, devem obedecer às ordens dos EUA e, nos contratos com os bancos brasileiros, precisam considerar a obediência às normas americanas. Além disso, as próprias subsidiárias dos bancos brasileiros nos EUA devem cumprir a legislação local. Essa é a complexidade do caso que enfrentamos hoje.
BBC News Brasil – E como o Swift entra nessa equação? Bancos russos já foram sancionados, qual é a chance de o Brasil sofrer um tipo de sanção parecida em relação ao sistema?
Villard – O Swift é um sistema de mensagens financeiras. Quando dois bancos, um no Brasil e outro na Europa ou nos Estados Unidos, realizam transações, as informações do envio, como pagamento de importações ou recebimento de exportações, circulam pelo Swift.
Essas mensagens identificam o valor, quem envia, quem recebe. Ele é, portanto, apenas um mensageiro. Depois da mensagem, ocorre o fluxo da moeda propriamente dita, que quase sempre passa pelo dólar como moeda intermediária.
O Swift é uma entidade sediada na Bélgica, submetida às regras da União Europeia, mas da qual participam centenas de bancos — se não me engano, mais de 200 instituições financeiras.
Ele deve obedecer à legislação europeia, mas grande parte dos membros são instituições financeiras norte-americanas ou europeias que têm depósitos em dólar (eurodólares). Assim, mesmo na jurisdição da União Europeia, essas operações também envolvem dólares.
A China chegou a trabalhar em um sistema paralelo, mas ele não tem alcance equivalente. O acesso ao Swift é essencial, mas não é o único pilar. Existem outras entidades que sustentam a infraestrutura de pagamentos e transações financeiras internacionais.
Uma delas é a Clearing House de Nova York, com o sistema chamado Chips, do qual, inclusive, o Santander é membro.
O Chips, submetido à legislação norte-americana, faz clearing (compensação) de diferentes transações internacionais. Hoje, 95% dessas operações têm ao menos uma ponta fora dos Estados Unidos. Não podemos chamá-la apenas de Clearing House americana; é internacional, mas sob jurisdição dos EUA.
Essas entidades são fundamentais para o funcionamento do mercado financeiro global. Para os bancos brasileiros, o risco é enorme: não só para pagamentos internacionais de exportações e importações, mas também para operações de crédito e captação de recursos. Fundos captados por meio de emissão de títulos no exterior, por exemplo, passam por essas infraestruturas em Nova York, especialmente pelo Chips.
BBC News Brasil – Uma decisão do Flávio Dino colocou os bancos, de certa forma, nesse fogo cruzado. Gostaria que você explicasse: se os bancos obedecem à lei americana, quais são os riscos? E, se desobedecem à decisão do STF, quais são as consequências?
Villard – Essa decisão do Flávio Dino, é importante dizer, não se refere a esse caso específico da aplicação da Lei Magnitsky e da inclusão do ministro Alexandre de Moraes na lista.
Na verdade, foi usada como um recado institucional para os bancos. Tratava-se de um caso distinto, relacionado à aplicação extraterritorial de decisões internacionais de outras cortes.
O relevante é que o ministro Flávio Dino, apesar de discordar do conteúdo daquela decisão específica, se valeu desse processo, que tratava de um tema jurídico correlato, para vocalizar a posição do STF e mandar um recado institucional.
A mensagem foi: uma decisão internacional só pode ser integrada ao sistema jurídico brasileiro se seguir os procedimentos definidos pela Constituição. Essa decisão foi, inclusive, encaminhada a bancos e à Febraban.
Foi, portanto, um movimento de posicionamento institucional — um recado, digamos, “diplomático” do STF aos bancos. Embora não tivesse vínculo direto com o caso Magnitsky, antecipou o que seria uma eventual decisão da Corte caso os bancos resolvessem aplicar essa norma americana sem o devido processo de internalização.
O que isso mostra é o risco legal dentro da jurisdição brasileira: em tese, os bancos não deveriam aplicar a lei americana sem um processo formal de internalização no sistema jurídico nacional — algo que, evidentemente, não ocorrerá.
De fato, os bancos estão em uma encruzilhada: precisam obedecer à lei americana para garantir o acesso ao sistema financeiro internacional, mas também enfrentam uma possível futura decisão do STF, que já sinalizou que essa norma não poderia ser usada como motivação jurídica para excluir o ministro Alexandre de Moraes do sistema financeiro nacional.
Esse dilema revela a complexidade do problema, que não é apenas jurídico, nem só econômico ou político, mas uma combinação dos três. Não podemos reduzi-lo a uma questão puramente dogmática ou a um embate entre o STF e a elite política da extrema-direita.
No curto prazo, o STF — que não é apenas uma corte judiciária, mas também política, pela forma como foi estruturado na Constituição — tende a considerar não apenas os argumentos jurídicos, mas também os impactos sociais e econômicos de suas decisões.
Isso já ocorreu em outros momentos: no julgamento dos planos de estabilização econômica, na criação do Fundo Garantidor de Crédito, entre outros casos em que a Corte ponderou o efeito sistêmico sobre a inflação, o sistema financeiro e a estabilidade institucional.
Por isso, acredito que, se o STF tiver de se pronunciar sobre a Magnitsky, levará em conta essa contextualização econômica e institucional: o que significaria, de fato, para os bancos brasileiros, considerando a posição periférica do Brasil no sistema financeiro internacional, desobedecer à lei americana.
Num segundo passo, pensando em médio e longo prazo, a questão é: qual é a política do Estado brasileiro para construir alternativas? O que o Executivo, o Ministério da Fazenda, o presidente Lula estão desenhando para reduzir a dependência dessa infraestrutura dominada pelo dólar?
É preciso começar agora a pensar em alternativas que possam estar maduras em cinco, dez, vinte anos. Como construir um sistema financeiro internacional que não dependa exclusivamente da moeda americana?
Esse é um projeto de longo prazo, que deve ser articulado com parceiros da América Latina, do Brics e de outros blocos. A China já vem desenvolvendo esse tipo de infraestrutura há pelo menos 20 anos, ainda que dependente do yuan.
O Brasil, no passado, teve experiências embrionárias, como o Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML) com Argentina e Uruguai, mas são iniciativas incipientes.
É urgente que se construa uma política mais robusta, com recursos humanos e financeiros, para desenvolver alternativas. A necessidade desse plano ficou ainda mais evidente no cenário pós-eleição de Trump.
BBC News Brasil – Depois desse recado institucional do ministro Dino, o Ofac enviou um comunicado para cinco grandes bancos brasileiros. O que significa essa notificação, na prática? Qual é a situação hoje dos bancos?
Villard – Uma vez que o presidente Trump, por ordem executiva, inclui o ministro Alexandre de Moraes na lista do Ofac, essa entidade, que integra o Tesouro americano, passa a ser responsável por supervisionar o cumprimento da decisão.
O Ofac pode enviar cartas pedindo informações: quais medidas de compliance foram adotadas, quais procedimentos os bancos construíram para efetivar a regra.
O Ofac tem essa competência institucional de acompanhar a aplicação da norma. Os bancos, por sua vez, precisam criar procedimentos específicos para verificar se existe alguma transação envolvendo a pessoa física ou jurídica incluída na lista, ou mesmo sociedades nas quais essa pessoa detenha mais de 50% das ações.
Esta é a complexidade: é preciso ter certeza de que nenhuma transação está sendo feita direta ou indiretamente com o alvo da sanção. Esse é o primeiro passo para a aplicação de uma eventual sanção ou multa, caso o OFAC não esteja satisfeito com as respostas dos bancos.
BBC News Brasil – E se o Ofac não estiver satisfeito? Se os bancos disserem que não conseguem aplicar a sanção porque o STF se pronunciou, que medidas mais duras podem ser aplicadas? Pensando que estamos no contexto do julgamento do Bolsonaro.
Villard – O primeiro passo pode ser a aplicação de uma multa, geralmente proporcional às transações. Já vimos isso em casos como o da Binance, que acreditava não estar submetida à Magnitsky por ser uma exchange de moeda virtual, mas tinha várias contas de russos incluídos na lista. Foram milhares de contas e a multa aplicada foi milionária.
No caso do ministro Alexandre de Moraes, a sanção se concentraria em uma única pessoa, então a multa seria proporcionalmente menor. Tenho ouvido que, para bancos do porte dos brasileiros, uma multa de US$ 1 milhão, por exemplo, não seria significativa.
Mas há um ponto distinto nesse momento: o governo Trump tem usado esses mecanismos para fazer pressão política. A aplicação da lei depende do Executivo americano, que presta contas ao Congresso, mas com ampla margem de discricionariedade.
Portanto, o risco não está só na multa, mas no contexto geopolítico. O Ofac poderia, em último caso, excluir os bancos do acesso ao sistema financeiro americano — e isso, sim, teria impacto devastador, pois significaria cortar o acesso ao sistema financeiro internacional.
Esse é o cuidado que precisamos ter: o contexto hoje é muito diferente das gestões anteriores nos EUA. Vemos um uso político do poder jurídico concedido ao Executivo.
Desde a interferência de Trump no Banco Central americano até a aplicação da Magnitsky nesse caso, há um objetivo político, como influir o julgamento conduzido pelo Judiciário brasileiro. Trata-se de um ataque frontal à soberania nacional.
BBC News Brasil – O André Esteves, do BTG Pactual, deu uma entrevista dizendo que sanções não são novidade e que os bancos estariam preparados, numa visão mais pragmática. Os bancos realmente têm mecanismos para navegar essa crise sem grandes turbulências ou existe um risco que está sendo subestimado? O que faz esse caso diferente?
Villard – O contexto geopolítico é muito especial nesse momento. Ele é bastante distinto das gestões anteriores do Tesouro norte-americano. Isso, para mim, é algo que precisa entrar na avaliação do risco jurídico que a aplicação dessa lei hoje impõe ao sistema financeiro nacional.
Isso também demanda dos bancos não só um trabalho do departamento jurídico, de análise de risco e de identificação das possíveis sanções, mas também um trabalho diplomático no âmbito nacional.
Há, por exemplo, diálogo com a Corte Suprema brasileira e algumas tentativas de oferecer soluções financeiras para que não haja a desbancarização de um ministro do Supremo. Quais alternativas os bancos podem propor a esses ministros? O primeiro deles é o Alexandre de Moraes.
Não podemos esquecer que pode haver uma extensão dessa lista. Então, quais mecanismos financeiros podem ser propostos? Existe uma discussão sobre a criação de contas em cooperativas de crédito que não estejam conectadas ao sistema financeiro nacional.
Do ponto de vista pragmático, essa é a solução que temos hoje para atravessar essa encruzilhada sem a capitulação do Poder Judiciário: criar mecanismos que aliviem os efeitos sobre a pessoa física desses ministros. É o que podemos fazer no curto prazo.
Não consigo imaginar outra solução que não provoque tanto impacto na economia brasileira. Fora de pauta, na minha visão, deveria estar a exclusão de bancos do sistema financeiro.
A aplicação de sanções não é novidade: o uso de diferentes legislações sancionatórias pelo governo americano já mostrou que essas multas podem ser exorbitantes.
Isso, em parte, pode ser tratado pelos bancos. Mas o contexto de disputa, inclusive nacional, somado ao recado institucional enviado pelo ministro Flávio Dino, não favorece a economia do país — pelo contrário, impacta negativamente.
Talvez aqui uma ação diplomática com instituições brasileiras seja extremamente importante: como construir alternativas sem impactar ainda mais a economia, que já vem sofrendo desde o tarifaço.
BBC News Brasil – O governo Lula tem se apoiado no discurso da soberania nacional, que foi a principal pauta do ato de 7 de setembro. Mas você descreveu que o Brasil está na periferia do sistema financeiro internacional. O que significa dizer que o Brasil não tem soberania monetária e que estamos na periferia desse sistema?
Villard – O direito internacional público, ao menos desde os anos 1930, com uma decisão da Corte Permanente de Justiça, reconhece que todo país soberano tem soberania monetária. Ela faz parte da soberania nacional: é o poder de um Estado emitir sua própria moeda, definir a unidade monetária, a política monetária e a política cambial.
É claro que esse poder pode ser restringido por meio de acordos internacionais. Quando o Brasil adere ao FMI, depois de 1945, ao sistema de Bretton Woods, restringe voluntariamente sua capacidade de gerir a moeda internacionalmente. O mesmo ocorre com Estados europeus que adotaram o euro. Isso mostra que a soberania monetária é, antes de tudo, um poder estatal que pode ser limitado por escolha.
O problema é que, desde a intensificação da globalização financeira, mesmo sem abdicar formalmente desse poder, os Estados se veem submetidos a forças econômicas que impõem restrições à soberania.
Uma delas é o papel do dólar como moeda internacional. Países que não conseguem emitir uma moeda aceita e usada globalmente, e que dependem da infraestrutura de outros países para realizar transações de comércio ou de crédito, acabam com a soberania monetária restringida involuntariamente — não por escolha, mas por estarem integrados à globalização financeira.
No caso do Brasil, isso significa depender de recursos em dólar e de captação de moeda internacional para aplicações e relações externas. Assim, nossa soberania monetária se reduz, pois, embora o real seja plenamente exercido no território nacional, fora dele o país está sujeito às amarras do sistema financeiro global.
BBC News Brasil – O tarifaço veio em meio a uma reunião dos Brics, após Trump criticar propostas de criação de moedas alternativas ao dólar para comércio entre países do grupo. Até que ponto é viável enfrentar esse sistema dolarizado? E como tem sido a reação dos Estados Unidos a essas iniciativas do Sul global?
Villard – É uma excelente pergunta, porque mostra a conexão entre o debate da lei Magnitsky e várias declarações do Trump contra iniciativas de diferentes países para restringir o uso do dólar e da infraestrutura financeira norte-americana internacionalmente.
Os Brics fazem parte desse movimento. A China, por exemplo, com o yuan digital, desenvolveu projetos no âmbito do BIS (Banco de Compensações Internacionais), o banco central dos bancos centrais, com sede na Suíça. Um deles foi o mBridge, liderado por China, Hong Kong, Tailândia e Emirados Árabes. A ideia era permitir transações diretas entre moedas locais, sem passar pelo dólar, usando o blockchain.
Em outubro de 2024, o BIS anunciou a saída do projeto, dizendo que estava maduro e que os bancos centrais poderiam levá-lo adiante sozinhos. Nos bastidores, o problema foi que a Rússia passou a chamar seu sistema de pagamentos alternativos de “Brics Bridge”, usando o mesmo nome. Isso gerou ruído diplomático.
Esse episódio mostra que alternativas estão sendo construídas. Países como China e Rússia investem seriamente em plataformas que permitam contornar o dólar. A novidade é que usam tecnologias originalmente associadas a criptoativos privados, como o blockchain, para criar moedas digitais soberanas.
O Brasil, por sua vez, tem o projeto Drex, a versão digital do real.
O Pix também ilustra esse debate. Inicialmente não usou blockchain, por decisão técnica do Banco Central, mas é um arranjo de pagamentos baseado numa infraestrutura pública — o SPI, Sistema de Pagamentos Instantâneos.
Hoje funciona nacionalmente, mas há projetos internacionais. O BIS, por exemplo, lidera a iniciativa Nexus, que conecta sistemas de pagamentos instantâneos como o UPI da Índia e o Pix brasileiro, permitindo transações internacionais sem passar por redes privadas americanas como Visa e Mastercard.
Isso mostra duas coisas: primeiro, que o Banco Central brasileiro está investindo em infraestrutura pública para garantir soberania; e segundo, que o Brasil saiu na frente nesse debate.
Tanto que, recentemente, o Banco Central Europeu começou a defender o euro digital com o mesmo argumento: a necessidade de assegurar soberania monetária, sem depender de entidades privadas submetidas à lei americana.
Ou seja, o que a Europa está começando a discutir agora, o Brasil já implementou com o Pix. Essa vanguarda nos garante até mesmo uma blindagem parcial contra eventuais sanções externas que poderiam afetar o sistema interno.
BBC News Brasil – Para finalizar: em relação ao Banco do Brasil, circularam fake news como que era preciso tirar o dinheiro do banco por causa das sanções. Existe algum efeito real para o dia a dia do brasileiro em relação a crédito, juros, deixar o dinheiro na conta?
Villard – O que é muito importante destacar é que o Banco Central do Brasil é reconhecido internacionalmente como uma das autoridades reguladoras com atuação exemplar na supervisão do mercado financeiro.
Temos mecanismos de estabilidade extremamente poderosos, como o seguro depósito e o Fundo Garantidor de Crédito, que assegura valores em caso de quebra de instituição financeira.
Construímos instituições e mecanismos regulatórios que fortalecem a estabilidade do sistema financeiro nacional. Desde o Plano Real, quando essa arquitetura começou a ser consolidada, o Brasil vem sendo reconhecido internacionalmente como modelo de regulação.
Ou seja, temos instrumentos para nos proteger de crises internacionais. Mas a lei Magnitsky revela algo importante: a resiliência interna é fundamental, mas precisamos também de cooperação internacional. Quando os dólares ficam escassos no mercado global, nosso sistema financeiro, que depende de conexões internacionais, também é afetado.
Quais mecanismos temos? Durante as crises de 2008 e 2020, o Brasil teve acesso a swaps com o Federal Reserve, o banco central americano. Pouquíssimos países emergentes tiveram essa cooperação direta.
O risco que vejo é que, numa próxima crise, esse apoio não se repita, considerando a influência que o governo Trump tenta exercer sobre o Federal Reserve, que supostamente tem autonomia.
Do ponto de vista da estabilidade do sistema financeiro nacional, temos instituições e mecanismos jurídicos para lidar com problemas.
Não vejo risco imediato. Mas precisamos, no médio e longo prazo, pensar em mecanismos cooperativos que permitam enfrentar crises internacionais de forma menos dependente dos Estados Unidos. Nosso sistema tem mecanismos para lidar com esse tipo de crise.
Sem Visa e Netflix? O que muda na vida de Alexandre de Moraes com Lei Magnitsky
O que é a Lei Global Magnitsky, que EUA usou contra Alexandre de Moraes