Como as fintechs mudaram o sistema financeiro no Brasil


Receita Federal publica medida que iguala fintechs a bancos tradicionais
O professor de educação física João Almeida nunca pisou em uma agência bancária. Aos 21 anos, gerencia suas contas pelo celular. “É muito mais fácil, rápido e não preciso me deslocar a alguma agência para fazer qualquer transação”, diz.
Assim como ele, milhares de pessoas no Brasil possuem contas em fintechs, empresas que unem tecnologia e serviços financeiros, que se tornaram parte fundamental da economia brasileira.
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Esse crescimento acelerado da parte digital do sistema bancário, no entanto, impõe desafios às autoridades.
Na última semana, uma megaoperação que investigou crimes de organizações criminosas revelou que o Primeiro Comando da Capital (PCC) movimentou cerca de R$ 140 bilhões em fundos de investimento via fintechs sediadas na Faria Lima, em São Paulo.
Além do uso para crimes financeiros, questões regulatórias, segurança de dados e sustentabilidade financeira dessas startups estão no centro do debate, em um setor que movimenta bilhões e redefine o futuro do sistema bancário brasileiro.
O que são fintechs
O termo fintech surgiu da combinação de duas palavras em inglês: financial e technology, e passou a identificar um modelo de empresa que mudou a forma como serviços financeiros são oferecidos.
Essas companhias têm na tecnologia o principal diferencial em relação aos bancos tradicionais. Ao digitalizar processos e eliminar camadas de intermediação, conseguem oferecer serviços menos burocráticos, de fácil acesso e, muitas vezes, a custos mais baixos.
O fenômeno ganhou força na última década, em paralelo à expansão do acesso à internet móvel e à crescente desconfiança em relação às tarifas bancárias tradicionais.
Entre 2017 e 2023, o número de fintechs na América Latina passou de 703 para 3.069, uma alta de 340% em apenas seis anos, segundo levantamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
O movimento consolida a região como um dos polos mais dinâmicos de inovação financeira no mundo, com um ecossistema que se expandiu rapidamente impulsionado pelo avanço da digitalização e pela busca de serviços financeiros mais acessíveis para a população ainda desbancarizada.
De acordo com a Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs), que representa as demandas do setor junto aos órgãos reguladores, atualmente o Brasil conta com 1.481 fintechs, que oferecem mais de 250 milhões de contas digitais e geram cerca de 100 mil empregos diretos.
“As fintechs têm um papel relevante, auxiliando na inclusão e cidadania financeira. De acordo com o BC, 60 milhões de pessoas passaram a acessar serviços financeiros pela primeira vez por meio de fintechs”, diz Diego Perez, presidente da associação.
Concorrência positiva
Com tal expansão, as fintechs passaram a disputar espaço com os bancos tradicionais em áreas como crédito, meios de pagamento, investimentos, seguros, câmbio e negociação de dívidas. E o impacto é visível. Do ponto de vista dos consumidores, essa disputa significou velocidade de operação sem tanta burocracia, além do acesso facilitado a serviços antes restritos a clientes de alta renda.
Segundo Marcos Piellusch, professor da FIA Business School, o ambiente altamente concentrado, onde os cinco grandes bancos controlavam cerca de 80% do mercado, abriu espaço para que concorrentes oferecessem melhores condições aos clientes.
“As fintechs ajudaram a reduzir tarifas, já que muitas passaram a oferecer pacotes gratuitos. Também ampliaram a inclusão de crédito, permitindo que pessoas com pouco ou nenhum histórico bancário tivessem acesso a financiamentos. Além disso, a conveniência aumentou de forma significativa, pois quase todos os serviços passaram a estar disponíveis diretamente no celular”, afirma.
O crescimento das fintechs ligou um sinal de alerta nos grandes bancos, trazendo mudanças importantes no mercado.
O Nubank, por exemplo, uma das maiores fintechs que operam no Brasil, já ocupa a terceira colocação em número de clientes no país, com cerca de 100 milhões, segundo dados do BC, e anunciou um lucro líquido de cerca de R$ 3,6 bilhões no segundo trimestre deste ano — número próximo aos R$ 3,8 bilhões do Banco do Brasil, instituição secular.
De acordo com Piellusch, com a concorrência, a principal linha pressionada dos cinco grandes bancos brasileiros foi a de receitas de tarifas e serviços, que perdeu relevância diante da competição de fintechs que oferecem transferências e cartões sem custo. Isso obrigou os bancos grandes a reagirem para manter a rentabilidade.
“Por outro lado, os grandes bancos reagiram reforçando áreas como crédito, seguros e investimentos, setores nos quais ainda têm escala e relacionamento de longa data com os clientes. Além disso, a digitalização e o fechamento de agências trouxeram ganhos de eficiência. Mesmo pressionados, os bancões brasileiros continuam registrando retornos sobre patrimônio (ROEs) acima de 15%, um patamar elevado quando comparado a bancos internacionais”, diz.
Regulação e futuro
Quando a inovação caminha mais rápido do que a regulação, no entanto, abre-se caminho para que a tecnologia seja mal utilizada, assim como no caso do PCC.
Para o presidente da ABFintechs, apesar do volume da operação, os casos registrados ainda são poucos e faz com que o setor trabalhe para deixar claro os benefícios da concorrência no mercado. Além disso, fake news sobre regulação fizeram com que o poder público atrasasse o projeto de regulação, dificultando o combate ao crime por meio das fintechs.
“Houve uma tentativa de fazer a regulação para que a Receita acompanhasse as movimentações no final do ano passado, mas foi objeto de fake news, com parte da política nacional acusando o governo de querer taxar e perseguir usuários do PIX. Por isso, tivemos que esperar uma operação policial, o envolvimento do crime orgnaizado para equivaler a obrigação de bancos e fintech”, afirma.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou, em resposta à operação policial, que as fintechs terão de cumprir as mesmas regras de transparência e prestação de informações e prestar os mesmos esclarecimentos sobre movimentações financeiras à Receita Federal do que grandes bancos.
Dessa forma, as companhias deverão ser submetidas à supervisão do Banco Central (BC) ou da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), de acordo com a natureza de suas atividades, como crédito, pagamentos ou investimentos. Nesse cenário, precisam seguir as regras da Circular nº 3.978/2020 e da Carta Circular nº 4.001/2020, que estabelecem diretrizes de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.
Essas normas determinam, entre outras obrigações, a comunicação ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) sempre que forem identificadas operações consideradas suspeitas, em conformidade com a Lei nº 9.613/1998.
A medida foi vista de forma positiva pelo setor. “A gente celebra, é um passo importante, e é uma correção, dado que as fintechs começaram a surgir no Brasil entre 2015 e 2016, e com essa norma apresentada, se corrige o problema”, diz Perez.
Para a advogada Erika Nachreiner, especialista no contencioso cível bancário, a atuação é positiva, mas é necessário atenção à regulação, que não pode ser severa demais, criando barreiras de entrada para novos players, e atrapalhando a inovação.
“A regulamentação é essencial para segurança e confiança, mas o excesso pode sufocar a agilidade, a inovação e a competitividade, prejudicando tanto as fintechs quanto os consumidores”, diz Nachreiner.
“O equilíbrio entre inovação e segurança depende de uma regulação proporcional ao risco, do uso de tecnologia para automatizar processos de compliance, de uma padronização mínima de procedimentos, da avaliação contínua de riscos sistêmicos e do diálogo constante com reguladores”, completa.
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